quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O Pico



Agora que bezerras da Moita do Ribatejo pastam, indiferentes, na Praça de Espanha para promoverem o turismo nos Açores, lembro aquela viagem:

Subindo o Pico
Os 2.351 metros de altitude fazem do Pico o ponto mais alto de Portugal. A subida faz-se por patamares, observando a metamorfose da paisagem: tufos de ervas e flores que se metem nos socalcos de lava enegrecida dão lugar a extensões de pedregulhos agudos onde pairam borboletas azuis que medem forças com o vento. Também elas sobem a montanha. A vertigem do Atlântico é constante.
O trilho fez-se aos ziguezagues, com enorme concentração. Os músculos das pernas retesavam-se cada vez que subia um troço mais elevado, fincando bem os pés na lava, agarrando ervas ou colando-me quase ao chão, se fosse preciso. O peso enorme que carregava às costas fazia-me temer um desequilíbrio e uma queda de costas naquele mar doloroso de pedras. A consciência do risco punha-me alerta. A inconsciência e a indiferença da Natureza: se alguém partisse as pernas ou escangalhasse os pés não seria por maldade dos pedregulhos, que rolariam, inocentes, para outro lado qualquer.


Nas nuvens
Uma cratera imensa onde assentavam grandes blocos de lava negra: era o topo do Pico. Os pedregulhos empilhados por ali compunham aquele deserto com quem íamos partilhar as estrelas.
Antes, houve o pôr-do-sol no alto do Piquinho, conquistado à força de braços e pernas, num terror de pedras rolantes. O marco assinalava o ponto mais alto, atravessado por um frio cortante. De uma pernada, ocupei o pódio, olhando a apoteose do dia. Os raios do sol da tarde matizavam as pedras com tons acobreados e as nuvens erguiam-se em volta, esplendorosas, cheias, sólidas e imóveis. Foram generosas: deixavam ver a língua esguia de São Jorge e, do outro lado, o Faial, que se recortava num horizonte dourado atapetado de nuvens. O Atlântico resplandecia, liso e prateado. E se isto não bastasse como recompensa, vi as fumarolas a darem de si num recanto daquele promontório agreste e sentei-me a gozar o vapor quente que subia das pedras.

Aquele vento, o frio e as estrelas
O vento que corria na montanha do Pico silvava de outro modo, soava a ermo e solidão. Aninhada em desconforto no bivaque, amassada pelas pedras e sem posição que me valesse, não resistia a descobrir uma orelha só para ouvir aquele vento. É que o vento também se saboreia e não será todo o mesmo. Reconheci-lhe uma majestade qualquer. O céu era um íman. Apesar do frio e da humidade, destapava a cara e fixava o pontilhado luminoso, um turbilhão de estrelas que entontecia.

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