terça-feira, 21 de abril de 2009

"O sorriso dentro de uma lágrima"

Tive a sorte, pela segunda vez, de ouvir falar o António Lobo Antunes. Fala baixo, fala pouco e fala bem. O que disse hoje naquele colóquio onde se discutia a velhice e a "doença" da solidão foi um improviso literário. Metido no seu olhar azul, aberto e espantado como o dos loucos, ia dizendo que morava num bairro pobre cheio de pequenos comércios, de pequenos cafés e de pequenos marginais e que um dia, jantando num dos restaurantes da zona, topa uma senhora velha e coquette, que manuseava os talheres com aprumo, "cheia de mindinhos" (e dizia, num aparte, que "há pessoas que só têm mindinhos").
E o empregado, a quem Lobo Antunes elogiou a delicadeza, a civilidade e a beleza antiga que ainda vislumbrava no seu olhar azul, informou-o que aquela senhora era uma actriz dos tempos do António Silva, que vinha a pé da Estefânia, onde morava, e jantava ali todos os dias. Confidenciou-lhe que era uma mulher que mantinha "os horários dos seus tempos de glória", deitando-se já de madrugada.
O escritor levanta-se. Aproxima-se. Pergunta-lhe: "Dá-me licença que lhe beije a mão?" Ela dá. Ele beija-lhe a mão. Senta-se na mesa e ficam os dois a falar. Mas o escritor não se fica por aqui. Pede-lhe também um sorriso e nisto a senhora baixa os olhos e retira um espelhinho da carteira, onde mira o estado da pintura. Então sorri. A sua boca pareceu ao escritor "uma copa de carta de jogar": "Aquele sorriso estava dentro de uma lágrima e foi o sorriso mais bonito que me deram." E naqueles instantes, a mulher ficou sem rugas e era de novo jovem e loura.
Foi um pouco disto que falou depois Adriano Moreira quando, numa intervenção lúcida e sábia, afirmou que é urgente olhar para "as histórias de vida" e sobrepô-las a uma mera visão "estatística e grupal" que se faz sobre as coisas. E insistia (porque nos esquecemos disto com demasiada frequência) que cada homem e cada mulher é um fenómeno que não se repete na história da humanidade.

3 comentários:

Irreligious disse...

Escreves tão bem...

Blog das 2h08 disse...

Pois, quase ninguém se lembra, mas cada um de nós, por mais insignificante que seja, é único na sua existência. Andamos depressa de mais para perceber esta verdade absoluta. Para quê?

RR disse...

Que texto maravilhoso.