quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Uma nova espécie humana no horizonte?




O Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa organiza até Março um ciclo de conferências integrado nas comemorações do Ano Darwin. A palestra “Darwin e o Darwinismo 150 anos depois da publicação da Origem das Espécies” inaugurou este ciclo, que decorre na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. O Prof. António Bracinha Vieira, psiquiatra, escritor, antropólogo e investigador nas áreas da Etologia e da Evolução Humana, avisa que na nova era da Genómica e da Proteómica pode vislumbrar-se o aparecimento de uma nova espécie de seres humanos. “É um problema algo inquietante que se desenha no horizonte e para o qual temos que ter consciência epistemológica e ética”






A ideia da evolução, da formação das espécies, da descendência a partir de antepassados comuns, da evolução gradual ou o conceito da selecção natural não foram perspectivas aceites de forma uniforme. Cada uma teve o seu tempo de sedimentação. Se a evolução a partir de um ancestral comum foi uma teoria imediatamente assimilada, a ideia da selecção natural “foi adiada” durante cerca de sete décadas.
De acordo com o Prof. António Bracinha Vieira — membro integrado do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, onde investiga nas áreas da Filosofia das Ciências da Vida e das Ciências Humanas — foi só na década de 1930 que a selecção natural “ressurgiu na cena” com a Genética de Populações. Através da disciplina fundada por Sir Ronald Fisher, John Haldane ou Sewall Wright, ficou demonstrado “como funcionava a evolução, não como qualquer coisa abstracta, embora óbvia, mas no terreno.” De facto, afirma, “tudo se joga ao nível das populações. É aí que se dá a evolução e a especiação.”
Distinguem-se vários tipos de especiação. Na chamada especiação alopátrica, um dado grupo populacional está isolado por uma qualquer barreira geográfica. Assim, “enfrentando pressões ecológicas distintas, vão desenvolver adaptações distintas e, a breve trecho, o genoma diverge o suficiente para que sejam espécies distintas. Se um sujeito de uma população do Sul for transportado para Norte já não se cruza com os exemplares que lá se encontram.”
No caso da especiação peripátrica não existem barreiras geográficas, mas na área de distribuição de uma dada população poderão existir pressões ecológicas muito diversas. Pode dar-se o caso de um indivíduo aprender a explorar um determinado recurso periférico, que promova a especiação.
Já a especiação simpátrica ocorre no mesmo ecossistema. O médico deu o exemplo de um tipo de flores da Amazónia ocidental que divergiram em duas espécies: a espécie de cor rósea, que só é polinizada por colibris, e a de cor avermelhada viva, exclusivamente polinizada por borboletas.

A selecção natural em movimento

A evolução acontece simplesmente porque a Terra não está parada. “A biosfera sofre alterações de toda a sorte, como alterações climáticas, que arrastam uma quantidade enorme de outras modificações. Se o clima muda, como agora está a acontecer, haverá consequências a muito breve trecho em termos de eras e tempos geológicos.”
E a selecção natural acontece sob os nossos olhos. Ela está “em movimento.” Para o ilustrar, o Prof. António Bracinha Vieira deu o exemplo da malária humana, onde os três protagonistas — o agente (protozoário), o vector (mosquito) e o hospedeiro (homem) — foram criando defesas e mutantes úteis à medida que as circunstâncias se alteravam.
O hematozoário cria resistências contra os antipalúdicos: “Certos casos de malária que há 20 anos eram tratados com cloroquina e remédios clássicos, hoje só são tratados voltando ao quinino.”
Também os mosquitos resistiram, quando passaram a ser combatidos com DDT [Dicloro Difenil Tricloroetano] a partir da Segunda Guerra Mundial. Contou uma anedota, dos tempos que passou no Norte de Angola, entre 1967 e 1970. “Quando fiz a minha Guerra Colonial, um Tenente-Coronel dizia-me: “Doutor, isto é terrível! Quando vim à primeira comissão víamos um mosquito na parede, deitávamos um jacto de DDT e ele caía. Na segunda comissão eram precisos dois jactos. Agora, nem com três jactos o mosquito morre...”
As populações humanas das zonas endémicas criaram as suas defesas sob a forma de hemoglobinas anómalas que acabaram por se fixar por serem benéficas. Explica: “O caso mais conhecido é a drepanocitose, que resulta do aparecimento de um traço recessivo que produz um tipo de hemoglobina que o hematozoário não digere. As populações tiram grande benefício desse traço, mas pagam-no, por outro lado: se, por acaso, dois progenitores heterozigóticos têm um filho homozigótico, esse indivíduo terá uma anemia muito grave e, em princípio, irá morrer antes da puberdade. Vejam a selecção natural em jogo!”


A evolução “é radicalmente oportunista”
Quando John Gould, ornitólogo e ilustrador, observou os tentilhões que Charles Darwin lhe tinha enviado das Ilhas Galápagos — onde o navio HMS Beagle chegou em 1835 — identificou essas aves como espécies distintas e não como variedades. De acordo com o investigador, Darwin passou a olhar para a insularidade como um formidável laboratório para a especiação.
No caso dos tentilhões, houve uma população fundadora que se distribuiu pelo arquipélago. Uma vez que a evolução “é radicalmente oportunista”, cada grupo de aves soube adaptar-se ao ambiente diverso onde se fixou. O fenómeno foi cunhado pelos biólogos modernos como “radiação adaptativa”. Os tentilhões das Galápagos desenvolveram bicos muito diferentes — uns longos, outros curtos — que se adaptavam aos recursos alimentares disponíveis em cada ilha, que podiam ser grãos ou insectos. Assim, “a especiação partiu de uma pressão ecológica alimentar.”
O caso das tartarugas é distinto. Como conta o Prof. António Bracinha Vieira, Charles Darwin jantando um dia em casa de um pescador das Galápagos e ao deparar-se com a sua colecção de carapaças de tartaruga, observou que os desenhos na placa ventral das carapaças eram variados. Quando perguntou ao pescador de onde vinham os exemplares, o homem ligou cada padrão a uma determinada ilha. Neste caso, está-se perante mutantes neutras, nem adaptativas, nem contra-adaptativas.
E houve a famosa carta que o naturalista Alfred Russel Wallace endereçou a Charles Darwin, onde apresentava em traços largos a teoria da evolução por selecção natural, a mesma que Darwin amadurecia há já uma vintena de anos, terminada a viagem do Beagle, em 1836.
Wallace escolheu Darwin para seu interlocutor por ser um homem viajado e não um “naturalista de museu”, como foram, afirma o orador, os franceses Jean-Baptiste de Lamarck e Étienne Geoffroy Saint-Hilaire, “que descobriram a evolução no museu, porque tinham ali os exemplares.”
Darwin ficou impressionado com a carta de Wallace e ponderou até destruir a sua própria obra. Demoveram-no amigos como o botânico Joseph Hooker e o geólogo Charles Lyell. Chegou-se então à solução de ler os escritos dos dois naturalistas numa reunião na The Linnean Society of London, em Julho de 1858. Um ano depois, Charles Darwin publicava “Sobre a Origem das Espécies por Meio da Selecção Natural, ou a Conservação da Raça Favorecida na Luta pela Vida.”

A revolução da Biologia Molecular


Os trabalhos na área da genética feitos pelo monge e botânico austríaco Gregor Mendel, contemporâneo de Darwin, foram redescobertos pelos naturalistas Hugo De Vries, Carl Correns e Erich von Tschermak no início do século XX. A partir daqui, a selecção natural passa a ser encarada em dois planos: o da genética e o dos acontecimentos da Natureza. “A selecção natural vai ser descrita e ilustrada, sucessivamente, por investigadores que estão na Natureza e por outros que estão no laboratório.”
Nos anos 40 surge “a grande síntese”, que compatibiliza as ideias da genética com as dos naturalistas. Um dos protagonistas desta “síntese moderna” foi Julian Huxley, neto de Thomas Henry Huxley, amigo e apoiante de Charles Darwin. Depois, Theodosius Dobzhansky, Ernst Mayr ou George Stebbins “desenvolvem a nova síntese, ampliam-na e demonstram-na a todos os níveis.”
A Biologia acabaria por sofrer uma nova mutação com o desenvolvimento da Biologia Molecular. Segundo o Prof. António Bracinha Vieira, “nas últimas décadas, a Biologia Molecular representou uma revolução em toda a Biologia. Em primeiro lugar na sistemática dos animais e plantas, que eram classificados por critérios morfo-fisiológicos e que passaram a ser classificados segundo o seu próprio perfil genómico.”

Uma nova espécie de humanos?

Mas está em curso outra revolução, agora que se exploram novos ramos da Biologia Molecular — a Genómica, a Proteómica e a Metabolómica — que, sustenta, “abrem novos horizontes, extremamente excitantes e algo inquietantes”
De acordo com o Psiquiatra, “o que está no horizonte heurístico é injectar num determinado organismo uma sobrecarga genética que pode juntar-lhe benefícios consideráveis. Estamos perante o mito do Brave New World”, numa referência à novela de Aldous Huxley, irmão de Julian Huxley, note-se, publicada em 1932. Esta obra, afirma, “anuncia um pouco o que está a acontecer com a Proteómica e a Metabolómica: a possibilidade de construir, por exemplo, indivíduos com grande resistência ás doenças.” E quem irá beneficiar destas mudanças? “No estado neo-liberal actual do mundo, serão os ricos.”
Poderá então vislumbrar-se o aparecimento de uma subespécie, ou até de uma nova espécie, de seres humanos. “Isto é um problema algo inquietante que se desenha no horizonte e para o qual temos que ter consciência epistemológica e ética.”


Filipa Lourenço

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